sábado, 19 de janeiro de 2008

O encontro do Palhaço e da Bailarina
Para Diogo Schneider



Temps de poisson. O pas da bailarina era de paz. Ligne ouvert. Noite imensa, o céu estrelado, e ela desobedecida, voltava da sua noitada em passos largos. Ela olhava livre a luz da lua ilumiando a lona do circo. Ia sorrateira, madrugada afora e adentro. Pulou estrategicamente o muro, tirou as delicadas sapatilhas e caminhava em direção ao canto esquerdo da lona. As luzes do circo estavam todas acesas... E ela estranhou. Pensou primeiro que o dono do circo pudesse descobrir a sua fuga para a cidade na última noite de carnaval... Mas não! Havia muito burburinho e muita gente acordada. Ela reparava no desenho das sombras no chão. Tentava adivinhar... A trupe dos palhaços, as dançarinas, os trapezistas... Os malabaristas!... Estavam todos acordados e conversando agitados. Ela se aproximava lentamente, na ponta dos pés, do lado de fora da lona, e do lado de dentro, ela era a sombra. Foi quando escutou a voz da mulher barbada:


- Mas vocês já acordaram a bailarina? Ela precisa saber o que está acontecendo!!

Ela se assustou e em passo double, que só ela saberia dar, vôou em direção a entrada principal do trailler. Fechou o casaco longo e preto que cobria as cores da fantasia da columbina, escolhida especialmente para o carnaval, e entrou sua erguida postura costumeira. Altiva, gélida. A bailarina intocável. E aquela imagem de perfeição que cansava a normalidade realista.

- Nossa, mas o que está acontecendo aqui... (disse, em tom baixo).

Era a quarta feira de cinzas do palhaço. A Rita levou o sorriso, o assunto e o retrato do palhaço. A Rita levou os quadros da sala, o disco de Noel e o dvd do casamento. A Rita levou o colar de noivado, a Rita levou a alma do palhaço. A Rita, umas das dançarinas do circo, e também a esposa do palhaço, havia fugido com o domador de leões a algumas horas atrás. Mas a Rita, a Rita era o coração do palhaço.

- Onde está o palhaço?

- Ele quer ficar sozinho.

- Onde está o palhaço?

Enquanto ouvia risadas e pouco caso nas outras vozes, o seu coração disparou... o palhaço era o seu irmão. Disparou-se em piruetas ao encontro dele.

Só, no centro do tablado, sentado, e em leito. O Arlequim havia secado. No meio do palco, ator chorava personagem. Bobo. Estúpido. Eles riam do palhaço, e ele espectáculo e coração de pano. No palco em que muitas vezes arrancara gargalhadas dos corações dos carrancudos da cidade, ele sangrava. Ele era cheio da graça, e atrás do seu nariz, sem graça. O palhaço pintado.

A bailarina foi em direção ao encontro. Tirou o casaco preto, soltou os cabelos e apressou-se. Os dois estavam nus no centro do tablado.

O movimento do tirar do casaco era o da máscara da bailarina caindo. Via-se. A columbina solitária. O colorido sujo da saia de tule, a maquiagem borrada, e aquela fugacidade vazia que ia levar um tapa na cara. Ela procura apressada um isqueiro. O cigarro aceso na mão, a fumaça. Ela, ligeiramente bêbada. Escutou:

- Amanhã, as dez horas, estarei aqui fazendo algumas crianças darem risadas.

- Eu fiquei sabendo de tudo agora, mas você está bem? Olha pra mim, não pensa nisso agora.

- Amanhã preciso tirar umas boas risadas daquela crianças.

- Tira o seu nariz? Conversa comigo!

Ela tragava ansiosa, e respirava a sua impureza... Ele olhou e falou sério:

- Tira essa roupa suja, vai tomar um banho, e limpar essa maquiagem, você precisa mais do que eu.

Ela âtonita, permanecia em silêncio. Ele com nariz, continuava:

- Vai se olhar no espelho bailarina! Sim, eu sou um palhaço, e você... quem é você? - Ele amansa o tom, e continua, enquanto tira o cigarro da boca da bailarina - Eu, pelo menos sei exatamente o que eu sinto. (Depois de alguns instantes de silêncio, continuou). Mas e você, em relação aos seus sentimentos, jogada ao vento desse jeito, vai poder me ajudar?

- Fala vai... (disse docemente, enquanto tirava aquele debochado nariz).

Ele era um desses sonhadores incorrigíveis, o palhaço. O lirismo, a nostalgia de um sonhar que não se sabe se era afogamento, ou se era algodão doce. De alma pura e apaixonada. E ela conhecia muito bem aquela alma dócil, aquele coração mole, pintado. Mas aquele jeito de falar... aquela firmeza... Ele estava frio. Ela pegou em sua mão, ela o puxou. Tentou abraça-lo. Ele afastou o corpo e continuou olhando firme para o nada. Ela insistiu e ele a negava. Ela o puxou violentamente até que... abraçaram-se. E em um impulso, em uma inspiração de ar que subia pesada pelo peito do palhaço, ele, ele, ele respirou. O palhaço desandou a chorar.

Ele dizia e chorava e ele falava confuso. Ele dizia que a culpa da Rita ir embora havia sido dele... E se ele tivesse pressionado a Rita? E se a Rita tivesse com algum problema que só o domador dos leões pudesse resolver? E se ela nunca o tivesse amado? Como a Rita teve coragem de levar o dvd de casamento? Será que era para sempre?

A bailarina ouvia incomodada aquele desabafo. Os minutos passavam e aqueles desabafos intermináveis, e ela ouvia, o volume triplicado do desabafo no ouvido da bailarina... Todas aquelas teorias absurdas... Absurdas. A bailarina ficava nervosa com o amor sincero do palhaço.

E ele continuava, alheio a agonia de ouvinte da bailarina, e dizia lindamente com o carinho em cada letra, com a beleza de uma calma desesperada das emoções que estupravam a mente sobre a sua amada.

Ela, indignada, queria mesmo era fazer chocalho do palhaço.

Ele fazia planos mirabolantes, e suas palavras eram música. Ele calculava os passos, ele sofria e estava calmo. Ele amava. Infinito.

Ela, em revolta, espremia a mãos, mordia os lábios, uma dor de cabeça que...

Era o fim para ele. A Rita traiu, a Rita humilhou, a Rita levou o dvd do casamento e as duas caixas dos remédios. A Rita queria viajar no reveion para a Tailândia, e gostava do seu novo relógio da Dolce e Cabana do Paraguai que ganhou domador de leões.

- Não, você não gosta mais da Rita!!! (Ela se levanta irritada e grita com o palhaço)... Se foca.... A Rita é uma puta! Ela não te merece! (Ela dizia isso quase impondo solidez ao coração de pano do palhaço).

Ela olhava para ele com pena, com raiva, identificada. Será que ele era espelho? O apaixonado palhaço, empenhado em descobrir o seu "motivo". O motivo pra Rita ir embora, assim, levando tudo, levando ele. "Só palhaço pra dar colher de chá, na hora de dar bofetada!". E ele, ele perdoava o ser amado. Ele perdoava, e ainda queria voltar.

Ela, num ato falho de segundo, sentiu... sentiu... A bailarina sente alguma coisa? A bailarina sentiu um calor no peito, e em seguida, e em seguida uma vontade de chorar também. Os olhos azuis do palhaço transbordavam. As lágrimas fortes, latentes e úmidas do palhaço eram a beleza e era a coragem. O lago de lágrimas do palhaço era a natureza, era a água mais pura de beber do amor.

Ela olhava, ouvia e sentia as lágrimas doloridas e as suas nasciam, e eram orgulhosas. Mas ainda sim, saiam, aliviadas... Porque corriam e eram sangue. O bravo palhaço, palhaço porque falava a verdade pra ele mesmo.

- Sim, eu sou um palhaço.

Lagoa azul do choro do palhaço. O rosto pintado, molhado, e o sorriso espremido que agente dá enquanto chora, não era careta. Era o palhaço de verdade. Lindo. Enorme em sua fidelidade sentimental consigo próprio, em seu devotamento.

A bailarina tentou conter-se, respirou fundo... Aquilo era uma das coisas mais bonitas que a bailarina tinha visto. Era um momento eterno. Procurou novamente pelo maço de cigarro... Onde estavam aqueles malditos cigarros? Ela, ela, ela em sua fortaleza frígida derretia no mar das lágrimas do palhaço. Ela se ajoelhou e descarregou dez quilos de nariz arrebitado. Se pôs a chorar junto com o palhaço num choro incontível. A bailarina abriu a boca e o berreiro e os sons do bezerro junto. Amígdalas. Ela sentou, ela caiu. No chão, em si. Dentro do circo mágico da vida. E ela chorava feliz enquanto agarrava as mãos do palhaço. A bailarina abria o coração graças ao palhaço. Ao grande amor do palhaço.

Trágico, os infelizes.

A postura torta, o rosa chá encostado no palco empoeirado do circo, escancarada, pernas abertas, postura caída, quase que derrubou o coração
pela boca. A bailarina, agora, tinha um coração para chorar.

Ela deixou os vazios, dançou no incerto. Grand Pas de deux. O olho azul do palhaço. Manége. Era um rio e a levava lagoa a dentro em seu mar, no seu azul. Ouvert. Na imensidão do amor inalcansável, na firmeza daquele choro colorido e engraçado. Pas de valse. A bailarina chovia. No choro que a fazia de verdade. Sur les pointes. O deixar-se entregar na beleza da fraqueza. Sim, era belo ser vencido. Ser humano. Ser mortal. Ser palhaço.

Olhos nos olhos, na beleza do encontro de duas almas, foi o destemido que encarou com o mesmo azul a frangote bailarina:

- Vamos? (disse enquanto estendia a mão).

Ele coloca o seu nariz com cuidado, encara o caminho entre a arquibancada, e segue. A bailarina veste a sua capa, e acelera os passos para acompanhar o palhaço. O esforço era sobre-humano, e eles, artistas, vão adormecer para morrer durante o resto de noite. Havia o show das dez horas. O show que deve continuar. O show que tem que continuar. E o show que é o chão. A arte que imita a vida. Foi o homem matando o menino naquele caminhar até o trailler. Um caminhar de pés, mãos e cabeças dadas. E eles morreram durante o sono.

- Hoje tem marmelada? Tem, sim Senhor! Hoje tem goiabada? Tem, sim Senhor! E o palhaço, o que é? Respeitável público, hoje temos o prazer de apresentar, no espetáculo da vida, a principal atração desta manhã, com vocês, o palhaço Rapadura Mole, e a Bailarina Espoleta!!!

A platéia vibrava, as crianças gritavam, algumas agarravam-se as suas mães, e outras gostariam de invadir o palco e agarrar o palhaço. O casal de namorados que dividia a pipoca, passou a dividir as risadas. Ouvia-se de longe as gargalhadas daquele picadeiro, daquele piadeiro... Pintado de alegria, e das graças, do palhaço.

Um comentário:

Unknown disse...

Minha lindaaaaaaaaaa...
Estou sem palavras para agradecer este presente maravilhoso que tu me deu..
Eh simplesmente foda...
Assim como a gente nao eh mesmo..
Parabens, ta lindo!!!!
Muito obrigado

Diogo Schneider