segunda-feira, 27 de outubro de 2008

dona guilhotina



É sim... é sim, é. Uma montanha russa. Ou roleta, também russa. Ou corredor, polonês. Dependendo de como se tateia a massa disforme que intervém, ora ou outra, e hora sempre. Mas o que de repente interrogava levemente e de forma constante, era a pergunta.

- Mas e Alice, por que você não foi Alice?

Entre quaisquer condenações ao qual podemos entregar a nossa alma. Entre tantas idealizações morais e éticas. Fica a sonora pergunta para o momento pós-partida: “Mas e Alice, porque você não foi Alice?”. De toda as coisas que se pode ser, a única que se desejava mesmo, e muito, é o ser, si mesmo em propriedade. E era por isso, que o certo e o errado dilatavam-se em veredas arbitrárias e mais felizes.

a água ao nível do nariz




“Você não entende e não vê, mas eu não posso deixar de dizer meu amigo, que uma nova mudança em breve, vai acontecer... O que era novo, jovem, hoje é antigo, e precisamos todos, rejuvenescer. E precisamos todos, rejuvenescer”. Velha Roupa Colorida, Belchior

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Engraçado. Mas aquela música passeava corpo adentro. “você não entende e não vê...”. Não porque houvesse interesse. Não porque haveria entendimento. O que havia era a música e a falta de compreensão. Aconteceria.

Passaram dias, semanas, meses. E aquele soar magnético fazia melodia e intercalava neurônios em sinfonias sensitivas. Por quê? Em um determinado momento, perdeu-se a curiosidade, e esqueceu-se da música. Elas existiam, no entanto.

O meio. Quando é que não se é meio? Mas naquele momento, quase ano depois da primeira vez que a música sibilou, houve um presente representativo. de presente. de repente. inesperadamente. mente.

mente, de mentira. ou a mente, de verdade?

no meio...

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"(...) um episódio paradigmático do momento de encontro dos interesses do corpo e da alma: a saída dos hebreus do Egito. Por tratar-se de um símbolo de movimento ativo para deixar a escravidão rumo à liberdade, esse acontecimento em muito se presta para exemplificar os processos humanos que realizam movimento semelhante.(...) o Egito é, acima de tudo, um símbolo, por representar um lugar que "já foi bom" e deixou de ser. (...) a etimologia habraica da palavra Egito - mistraim - quer dizer lugar estreito.Todos nós deparamos com lugares que se tornam estreitos em determinado momento. Estes lugares, que outrora serviram para nosso desenvolvimento e crescimento, se tornam apertados e limitadores.No processo de saída de um lugar estreito, temos uma descrição interessante dos fatos históricos ocorridos no relato bíblico. Segundo o mesmo, o processo de saída esbarra num limite tão real e profundo como o mar.(...) Quando resolvemos sair do lugar estreito, ocorre um processo semelhante com o corpo. O corpo não gosta de sair, de mudar. São a estreiteza e o desconforto que o convencem de que não existe outra saída. Mas para onde ir se o corpo não conhece nada de diferente de si mesmo? A alma, imoral em sua proposta de desalojamento do corpo, impõe uma caminhada que para o corpo acaba por ser um enfrentamento com uma barreira aparentemente intransponível. Como seguir rumo à terra prometida, ao futuro, se entre o presente e ela existe um fosso, um mar, absoluto. O corpo então questiona a sensatez da alma. Os portões do passado se fecham, os do futuro não estão abertos e o corpo experimenta a mais temida das sensações - o pânico de se extinguir.Encurralado diante do mar, o povo, representativo do corpo, assume algumas posturas possíveis. De acordo com o ensinamento chassídicos, existem quatro comportamentos clássicos mencionados como quatro acampamentos. (...) O primeiro quer voltar, o segundo quer lutar, o terceiro quer jogar-se ao mar, o quarto mobiliza-se em oração.(...) Nenhum dos acampamentos representa o futuro e a saída. Todos eles são variações sobre a hesitação e a vacilação. São, na realidade, a fronteira onde um corpo morre para renascer com uma mesma alma em outro corpo - do outro lado da margem.(...) A resposta de D´us às vacilações do corpo, ou seja, resposta proveniente da fonte de toda alma e todo futuro, é igualmente decisiva e intrigante (Ex:14:15): "Diga a Israel que marche."(...) Conhecemos o final do relato bíblico em que o mar se abre. Mas, para o Midrash - comentários alegóricos dos rabinos -, a abertura do mar se dá de uma maneira muito peculiar. Um homem chamado Nachshon ben Aminadav, que não sabia nadar, começou a adentrar as águas. Estas, no entanto, não se abriram num primeiro instante. Somente quando o homem já estava com a água no nível do nariz, as águas se abriram.(...) Nachshon compreende a recomendação de D´us: "marchem". O futuro existe se vocês marcharem. O futuro, porém, não está ligado ao presente pelo corpo. A alma guiará o caminho seco por meio do molhado, de um corpo a outro ou de uma margem a outra.Saber abrir mão desse corpo na fé de que outro se constituirá é saber dar o passo que leva até onde "não dá mais pé". Enquanto der pé, estaremos estacionados em acampamentos.Esse profundo ato de confiança em si e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar amplo se faz acessível.(...) Passar por um processo de mutação de maneira bem sucedida é irromper em um outro corpo que não se sabia que poderia conter nosso "eu"." Trechos do livro, A alma Imoral, de Nilton Bonder.

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meio, meio, meio.

era o caminho.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ana em frentes e verso, e, sem lugar nenhum.





- What’s the BIG deal, Miss Jeny?

Ana, brasileira, perto dos seus cinqüenta anos de idade muito bem explorados pelos tios, o Banana e o Sam’s, disse isso em alta voz, e gesticulando muito. Disse teatralmente as quatros paredes e a única ouvinte presente que quisessem ouvir. O olhar em fúria, o punho cerrado, os braços batiam-se nas pernas e no peito. Violentamente. Eram os olhos pequenos, da cara gorda da Ana, da papa gorda da Ana entre a cara e o pescoço. Os cabelos ralos, precisando de tintura, e um batonzinho vermelho, com cor desses bantonzinhos quaisquer da feira do domingo. Era vermelho. E tinha a sobrancelha bem tirada e as unhas feitas. No conjunto, era feia. Mas notava-se que havia sido bonita. Os traços indígenas dos pequenos olhos de Ana vibravam vida e pobreza. Sua luta, sua cruz, seu colar da Virgem Santíssima no pescoço. Ana.


Da chegada do Amor, ela se lembra da infância, em Renascer, no interior de Minas Gerais, dos pais, e de suas três marias. Da rústica igreja, do padre Seu Marcus, de casinhas brancas, do cheiro da terra e dos bons sonhos de menina. Da partida Dele, ela se lembra do casamento, do marido e do forte cheiro da cachaça no cochão, nos armários da cozinha e da sala, no sofá, no azulejo, e no berço das filhas. Era o cheiro das paredes, e as marcas de pé do João. As marcas no corpo da Ana, das filhas. O ar da pequena Renascer, de repente, era o perfume do seu João.

O álcool chegou de mansinho em seu portão. E não deixou nada pra trás. Nem a Ana. Que foi pra frente. A Ana na América, com vinte e muitos anos, levava na mala os bons sonhos de menina. “- Hão de ter lugar neste mundo!!”


O tempo dobrou. E a idade da Ana também. E naquela tarde, por um breve momento pulmonar, muito breve mesmo, seus pequenos olhos pediam muitos ouvidos, e pediam mãos, queria palco e platéia. Restavam Alice e uma cozinha sem janelas, e mal iluminada. O desabafo era bilíngüe, mas a Ana era trilingue, como a cidade de Nova York, sua casa.


- Sabe Alice, eu não agüentei. Eu disse pra ela não se preocupar, e ir se deitar enquanto eu fazia os dois serviços, o meu e o dela. Mas, eu quero saber, qual o grande problema? Onde está o problema? Qual o grande problema Alice? Eu não entendo essas pessoas que ficam tendo crises por cada coisinha besta. Vixi... Esse povo não sabe o que é problema. Você acredita que ela foi se deitar mesmo?


Ela descrevia seu dia anterior de trabalho, a cena em que ela e uma colega, também empregada doméstica, descobriram que seriam demitidas porque a casa na qual trabalhavam havia sido vendida. Ana não se conformava com a moleza da outra. Alice não se conformava com a força da Ana.


- Alice, e daí que a gente seria demitida? Nesse país, só não trabalha quem não quer! Me fala! Eu queria entender a relação entre ficar mal com precisar parar? Por acaso tá achando que sou prego na areia? Ela que tava com dor de cabeça, tomou uma água com açúcar e foi se deitar, pra acalmar... Sabe, essa gente. Eu não entendo.


- Nem eu, Ana, nem eu. (Disse isso sem saber, exatamente, o que estava falando).


***

“Essa gente”. Como se Ana não fosse gente. Como se Ana fosse bicho. Não era verdade. Não era verdade. Não era verdade. O que era verdade, era o bicho homem que pulsava no olhar furioso da gorda Ana, acima de todos os mortais. Como se cada quilo a mais fosse o desejo de mais. Mais tudo. Mais prazer, mais calma, mais alegria. Menos, muito menos. De muito, na Ana, só o dólar na conta.


O olhar nervoso e pequeno de bicho tinha mais de saudade do que de raiva. O Amor se foi e não voltou. Ana se foi e não voltou. Enquanto andava pela casa se procurando, falava alto com o marido e as filhas que nunca saíram dela. De dentro. Solidão da Ana. Resmungava as amarelinhas que não viu pularem. E se fazia presente mensalmente em uma quantia em dinheiro para cada uma das três marias. Muito, em reais também.


- Porque você num volta pra casa? (Alice perguntou).


- Fazer o que no Brasil? Naquele país é muito difícil ganhar dinheiro.


Os olhos pequenos, nervosos, e o bolso da Ana. Cheio. Eram a Ana gorda e vazia.