terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ana em frentes e verso, e, sem lugar nenhum.





- What’s the BIG deal, Miss Jeny?

Ana, brasileira, perto dos seus cinqüenta anos de idade muito bem explorados pelos tios, o Banana e o Sam’s, disse isso em alta voz, e gesticulando muito. Disse teatralmente as quatros paredes e a única ouvinte presente que quisessem ouvir. O olhar em fúria, o punho cerrado, os braços batiam-se nas pernas e no peito. Violentamente. Eram os olhos pequenos, da cara gorda da Ana, da papa gorda da Ana entre a cara e o pescoço. Os cabelos ralos, precisando de tintura, e um batonzinho vermelho, com cor desses bantonzinhos quaisquer da feira do domingo. Era vermelho. E tinha a sobrancelha bem tirada e as unhas feitas. No conjunto, era feia. Mas notava-se que havia sido bonita. Os traços indígenas dos pequenos olhos de Ana vibravam vida e pobreza. Sua luta, sua cruz, seu colar da Virgem Santíssima no pescoço. Ana.


Da chegada do Amor, ela se lembra da infância, em Renascer, no interior de Minas Gerais, dos pais, e de suas três marias. Da rústica igreja, do padre Seu Marcus, de casinhas brancas, do cheiro da terra e dos bons sonhos de menina. Da partida Dele, ela se lembra do casamento, do marido e do forte cheiro da cachaça no cochão, nos armários da cozinha e da sala, no sofá, no azulejo, e no berço das filhas. Era o cheiro das paredes, e as marcas de pé do João. As marcas no corpo da Ana, das filhas. O ar da pequena Renascer, de repente, era o perfume do seu João.

O álcool chegou de mansinho em seu portão. E não deixou nada pra trás. Nem a Ana. Que foi pra frente. A Ana na América, com vinte e muitos anos, levava na mala os bons sonhos de menina. “- Hão de ter lugar neste mundo!!”


O tempo dobrou. E a idade da Ana também. E naquela tarde, por um breve momento pulmonar, muito breve mesmo, seus pequenos olhos pediam muitos ouvidos, e pediam mãos, queria palco e platéia. Restavam Alice e uma cozinha sem janelas, e mal iluminada. O desabafo era bilíngüe, mas a Ana era trilingue, como a cidade de Nova York, sua casa.


- Sabe Alice, eu não agüentei. Eu disse pra ela não se preocupar, e ir se deitar enquanto eu fazia os dois serviços, o meu e o dela. Mas, eu quero saber, qual o grande problema? Onde está o problema? Qual o grande problema Alice? Eu não entendo essas pessoas que ficam tendo crises por cada coisinha besta. Vixi... Esse povo não sabe o que é problema. Você acredita que ela foi se deitar mesmo?


Ela descrevia seu dia anterior de trabalho, a cena em que ela e uma colega, também empregada doméstica, descobriram que seriam demitidas porque a casa na qual trabalhavam havia sido vendida. Ana não se conformava com a moleza da outra. Alice não se conformava com a força da Ana.


- Alice, e daí que a gente seria demitida? Nesse país, só não trabalha quem não quer! Me fala! Eu queria entender a relação entre ficar mal com precisar parar? Por acaso tá achando que sou prego na areia? Ela que tava com dor de cabeça, tomou uma água com açúcar e foi se deitar, pra acalmar... Sabe, essa gente. Eu não entendo.


- Nem eu, Ana, nem eu. (Disse isso sem saber, exatamente, o que estava falando).


***

“Essa gente”. Como se Ana não fosse gente. Como se Ana fosse bicho. Não era verdade. Não era verdade. Não era verdade. O que era verdade, era o bicho homem que pulsava no olhar furioso da gorda Ana, acima de todos os mortais. Como se cada quilo a mais fosse o desejo de mais. Mais tudo. Mais prazer, mais calma, mais alegria. Menos, muito menos. De muito, na Ana, só o dólar na conta.


O olhar nervoso e pequeno de bicho tinha mais de saudade do que de raiva. O Amor se foi e não voltou. Ana se foi e não voltou. Enquanto andava pela casa se procurando, falava alto com o marido e as filhas que nunca saíram dela. De dentro. Solidão da Ana. Resmungava as amarelinhas que não viu pularem. E se fazia presente mensalmente em uma quantia em dinheiro para cada uma das três marias. Muito, em reais também.


- Porque você num volta pra casa? (Alice perguntou).


- Fazer o que no Brasil? Naquele país é muito difícil ganhar dinheiro.


Os olhos pequenos, nervosos, e o bolso da Ana. Cheio. Eram a Ana gorda e vazia.

Um comentário:

Anônimo disse...

é incrivel como nós 2 mudamos depois desse ano e poko sem se ver...
Pra ser bem sincero.. cada vez q te encontro.. sinto uma gostosa sensação de readaptação à sempre nova Carol....o amor não muda mas nós mudamos né Cu?
quero vc sempre pertinho... e do lado de dentro..
bjoss Paguzinha!