quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

o dia em que as meninas atravessaram aquela porta... As que foram e as que ficaram. São a mesma.


"Não reescreverei o livro. Mitiguei seus excessos barrocos, limei asperezas, risquei sentimentalismos e imprecisões e, no decurso desse labor às vezes grato e outras vezes incômodo, senti que aquele rapaz que em 1923 o escreveu já era essencialmente - que significa essencialmente? - o senhor que agora se resigna ou corrige. Somos o mesmo; os dois descremos do fracasso e do sucesso, das escolas literárias e de seus dogmas. (...). Naquele tempo procurava os entardeceres, os arrabaldes e a desdita; agora, as manhãs, o centro e a serenidade".

Jorge Luis Borges, no Prólogo datado em agosto de 1969, para o livro "Fervor de Buenos Aires", que foi escrito em 1923, pelo mesmo autor. São o mesmo.


***
Um vulto preto descia a escada correndo como se fosse cair. Chave. Um vulto preto e desastrado. No segundo andar, uma menina, cabelos longos, sentada à penteadeira, no canto esquerdo do quarto. Penteava o cabelo. No banheiro do primeiro piso, outra. Ela estava nua. Ela fazia poses ardentes para o espelho e dalí não sairia. Apaixonada, vadia. Chave. Um vulto claro era como se luz entrando janela a dentro em direção ao altar cultuado na sala. Na cozinha, de avental, outra menina cozinhava. Havia uma menina com a tesoura na mão na sala, cortava os cabelos com força e violência. No porão, sete meninas gordinhas riam e brincavam de boneca, de amarelinha e de cambalhota. Estas eram sete. Sete. Chave.No escritório, três mulheres que liam e falavam sozinhas e andavam, como se calmas e desperadas, de um lado para outro. Agora, eram cinco delas. Uma senhora de chapéu violeta também passeava pela casa, calada, sábia. Ela olhavas as meninas, os vultos, as mulheres, as crianças. Reparava nas cores da parede, cinza, pretas, vermelhas, verde. Reparava no móveis da casa. Na sujeira, na limpesa. Gostava da música. Chave. Ela olhava olhando por todas. E caminhava. Chave. Ela notou a chave. Pensou em tocá-la. Será? Uma menina que tinha mania de andar com a cabeça virada pra cima tropeçou. A chave. Senhora de sí. Chave. Porta. E as meninas gordinhas que se riam:
- Vamos brincar de mãe da rua?
O dia em que a menina atravessou aquela porta, ela, elas, não seriam mais as mesmas, se a, as mesmas pudessem ser se houvessem ficado. Não seriam e existem. São sãs. Menina, Senhora e Maria. Existem todas e são loucas.

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