quarta-feira, 23 de abril de 2008

rascunho das Dores


Não sabia se sentia dor ou vontade de assassinato. Mas não queriar assassinar aos outros. Era um súbito desejo de estrangulamento, enforcamento, de fuzil. A agressividade corria no sangue e a enchia de dor. E de bençãos. Porque aquela vontade de morte era o único sinal de vida a apatia predominante. Mas era demasiada covarde para o ato suicida. Matar-se assim, definitivamente.



Os olhos arregalados e o papitar de um coração morto. Não encontrava mais a antiga tranquilidade do cotidiano auto-engamento, pouco a pouco a trapaça ao qual se submetera durante anos havia sido esclarecida. Malditos! Pensou alto enquanto roia as cuticulas e sorria e falava manso de não saber se existiria o dia seguinte. Aquele tempo que demorava demais pra passar dava-a a sensação de que os paralelepipedos azuis não existiriam, e se existissem, fossem eles o mijo. Era como se uma essência encoberta pela casa fosse ilapidável pelo tempo.



- Maldito tempo redondo!



Recobrou a lucidez apenas no dia seguinte, depois de passar mais de dez horas revirando-se nos doze lados da cama. Fora a eternidade aquelas dez horas, aqueles doze lados da cama, as horas que circulavam e eram as mesmas. Acordou encolhida na cama.


Ela, num ato de apropriamento de si. Ato falho. Tentava fechar os olhos que não se fechariam durante os próximos anos. Queria ser cabra-cega.

E as tristes descobertas, tão esperadas, eram de uma obviedade enjoativa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Estava com saudades de mexer nesse “angu”, preparado nas madrugadas, em Londres, é esse o prato de sustância que faz matar as saudades e viajar um pouquinho na história da “Alice”, no pais que nem sempre é maravilha ..... mais que ta cada vez mais alucinante, nos proporcionando varias sensações, tipo ; curiosidade, emoção, imaginação até mesmo medo rsrs ............ Agora é sério Nega, você ta ficando boa nisso.
beijos e saudades

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa